Consumo de Álcool e os Riscos Cardiovasculares: Um Alerta da American Heart Association

Resumo:

Este artigo apresenta uma síntese crítica da declaração científica da American Heart Association (AHA), publicada na data de 9 de junho de 2025, sobre os efeitos do consumo de álcool na saúde cardiovascular. O documento revisa evidências científicas sobre diferentes padrões de consumo e seus impactos em doenças como hipertensão, arritmias, AVC e insuficiência cardíaca. Ao contrário do que se sugeriu por décadas, o consumo moderado de álcool não deve ser aceito como medida preventiva para as doenças cardiovasculares.

1. Introdução

Durante anos, estudos populacionais sugeriram que o consumo leve a moderado de álcool poderia oferecer uma espécie de “proteção cardíaca”, especialmente no que diz respeito à doença arterial coronariana. Contudo, evidências mais recentes e metodologicamente rigorosas vêm contestando essa narrativa, destacando os riscos significativos mesmo em baixos níveis de consumo. Ainda que consideradas algumas possibilidades de redução de eventos cardiovasculares, o consumo de álcool é fortemente ligado ao surgimento de cânceres e é comprovadamente danoso ao sistema nervoso central e ao sistema digestivo. Quadros psiquiátricos e relacionais também sofrem a influência deste hábito.

2. Panorama da declaração científica

O artigo “Alcohol Use and Cardiovascular Disease: A Scientific Statement from the American Heart Association”, publicado em 2023 e assinado por Karen A. Piano e colaboradores, apresenta uma revisão crítica da literatura científica sobre os efeitos do álcool em múltiplos desfechos cardiovasculares.

Há um artigo de 2025 de Alcohol Use and Cardiovascular Disease: A Scientific Statement From the American Heart Association:

Mariann R. Piano, RN, PhD, FAHAGregory M. Marcus, MD, FAHADawn M. Aycock, PhD, RN, FAHAJennifer Buckman, PhDChueh-Lung Hwang, PhD, PTSusanna C. Larsson, PhDKenneth J. Mukamal, MD, MPH, FAHA, and Michael Roerecke, PhD on behalf the American Heart Association Council on Lifestyle and Cardiometabolic Health; Council on Cardiovascular and Stroke Nursing; Council on Clinical Cardiology; and Stroke CouncilAuthor Info & Affiliations

A análise abrange dados epidemiológicos, estudos observacionais, ensaios clínicos e pesquisas laboratoriais. Os autores enfatizam a influência de potenciais vieses metodológicos, como a falha em distinguir abstêmios de ex-consumidores com doenças preexistentes, além da interferência da indústria do álcool em estudos que apresentam resultados favoráveis ao consumo moderado.

3. Principais achados

Hipertensão arterial: Existe uma associação clara entre consumo de álcool — mesmo em níveis moderados — e elevação da pressão arterial sistêmica, com risco proporcional à dose ingerida. A cessação do uso de álcool ajuda muito na redução da pressão arterial e pode reduzir ou eliminar a necessidade de medicação anti-hipertensiva.

Arritmias (ex: fibrilação atrial): O consumo episódico e excessivo (binge drinking) está fortemente ligado à ocorrência de arritmias cardíacas, em especial à fibrilação atrial, uma arritmia com possibilidade de consequências drásticas, como o AVC. É fartamente descrita na literatura a existência da síndrome “Holliday Heart”, que é a ocorrência desta arritmia nos dias posteriores a um abuso de álcool num fim de semana ou feriado.

Doença arterial coronariana (DAC): Embora estudos anteriores tenham indicado benefícios cardioprotetores, a nova análise revela que esses efeitos positivos são provavelmente decorrentes de vieses de seleção e confundidores sociais (ex: melhor dieta e acesso à saúde). O álcool age piorando certos fatores de risco para DAC, como a hipertensão, a hipertrigliceridemia, a diabetes e os estados hiperadrenérgicos.

Acidente Vascular Cerebral (AVC): Há aumento significativo do risco de AVC hemorrágico em consumidores frequentes. Já o AVC isquêmico apresenta uma relação em forma de “J”, mas esse padrão está sendo cada vez mais contestado. Como é impossível prever qual indivíduo terá AVC-H ou AVC-I e considerando que na maioria dos casos o AVC-H é mais grave, é plausível considerar o álcool como fator de risco para AVCs.

Insuficiência cardíaca: O consumo excessivo de álcool é uma causa bem documentada de cardiomiopatia alcoólica, pois promove a dilatação cardíaca. Mesmo ingestões moderadas podem comprometer a função miocárdica em populações vulneráveis.

4. Recomendações da American Heart Association

A principal orientação é clara e direta: não se deve iniciar o consumo de álcool visando benefícios cardiovasculares.

Para aqueles que já consomem, a moderação deve ser estritamente respeitada, com atenção aos riscos de uso episódico em grandes quantidades.

A AHA enfatiza ainda que as melhores práticas para proteção cardíaca continuam sendo:

– Alimentação saudável: rica em fibras e potássio, pobre em gorduras saturadas e carboidratos;

– Atividade física regular;

– Controle da pressão arterial, colesterol e glicemia;

– Cessação do tabagismo;

– Combate à obesidade;

– Atenção aos estressores psicossociais;

– Incentivo à espiritualidade.

5. Considerações éticas e críticas à indústria do álcool

O documento também dedica atenção especial à influência da indústria do álcool sobre a produção científica. Muitos dos estudos que defendem benefícios do consumo leve são parcial ou totalmente financiados por empresas relacionadas ao setor, o que levanta sérias dúvidas sobre a independência e validade de seus achados.

6. Conclusão

A partir de uma análise sólida e atualizada das evidências, a American Heart Association conclui que não existe um nível de consumo de álcool que possa ser considerado universalmente seguro. Os riscos superam quaisquer possíveis benefícios e, portanto, políticas públicas, ações educativas e estratégias de prevenção devem priorizar a redução do consumo populacional, especialmente entre jovens e populações vulneráveis.

Bibliografia

PIANO, Karen A. et al. Alcohol Use and Cardiovascular Disease: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation, 2023. Disponível em: https://www.ahajournals.org/doi/10.1161/CIR.0000000000001160

Piano MR, Marcus GM, Aycock DM, Buckman J, Hwang CL, Larsson SC, Mukamal KJ, Roerecke M; on behalf the American Heart Association Council on Lifestyle and Cardiometabolic Health; Council on Cardiovascular and Stroke Nursing; Council on Clinical Cardiology; and Stroke Council. Alcohol Use and Cardiovascular Disease: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2025 Jun 9. doi: 10.1161/CIR.0000000000001341. Epub ahead of print. PMID: 40485439.

Précoma DB, Oliveira GMM, Simão AF, Dutra OP, Coelho OR, Izar MCO, et al. Atualização da Diretriz de Prevenção Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia – 2019. Arq Bras Cardiol. 2019. https://www.doi.org/10.5935/abc.20190204

Ibid. Seção sobre fibrilação atrial e padrões de binge drinking.

Ibid. Discussão crítica sobre viés em estudos observacionais antigos.

Ibid. Revisão das evidências sobre AVC isquêmico e hemorrágico.

Ibid. Tópico sobre insuficiência cardíaca alcoólica.

Ibid. Observações finais: conflito de interesse e influência da indústria.

Autores:

Abrão José Melhem Junior. http://lattes.cnpq.br/5318976120193636. Médico pela UFPR. Especialista em Medicina Interna, Cardiologia e Gestão em Saúde. Doutor em Desenvolvimento Comunitário pela Unicentro. Professor de Cardiologia do Curso de Medicina Unicentro.  Preceptor da Residência Médica da Unicentro. Chefe do Departamento de Medicina (DEMED) da Unicentro.

Rolf Hartmann. Cofundador e atual presidente da Cruz Azul no Brasil, atua desde 2008 como tesoureiro do Network Committee (Diretoria) da International Blue Cross (IBC), com sede na Suíça. É vice-presidente da CONFENACT – Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas. Professor do curso de Pós-Graduação em Dependência Química e Comunidade Terapêutica da Faculdade Luterana de Teologia. Em nível municipal, é conselheiro do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (COMEN), em Blumenau (SC).

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