Redução do financiamento de vagas em comunidades terapêuticas: impactos do encerramento de contratos e limitações orçamentárias a partir de 2023

Rolf Hartmann

Presidente da Cruz Azul no Brasil

O financiamento de vagas em comunidades terapêuticas (CTs) pelo governo federal no Brasil tem sido essencial para o acolhimento de dependentes de substâncias psicoativas, especialmente desde 2013, quando o governo iniciou oficialmente o apoio financeiro a essas instituições. No entanto, desde 2023, observou-se uma redução significativa no número de vagas disponíveis, principalmente devido ao encerramento de contratos com limite máximo de cinco anos e à falta de orçamento para a contratação de novas CTs habilitadas no Edital 8/2023, do Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas (DEPAD), vinculado ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). Essa diminuição tem prejudicado especialmente as populações mais vulneráveis e de menor poder aquisitivo, que dependem desse acolhimento para reintegração social e recuperação.

I – Evolução do financiamento de vagas (2012-2024)

1.1. Início do financiamento e crescimento inicial (2013-2014)

Historicamente até 2012 não existia nenhum tipo de recurso público para o financiamento do trabalho das Comunidades Terapêuticas no Brasil. Somente a partir de 2013, o Governo Federal começou a financiar o acolhimento em CTs, com a criação de mecanismos que permitiram o suporte financeiro a essas instituições. Em 2013, o governo financiou 7.846 vagas, e em 2014 o número de vagas permaneceu estável, com 7.811 vagas. Esse período inicial foi marcado pelo aumento do apoio às CTs, consolidando-as como parte importante da rede de atenção aos dependentes químicos.

1.2. Queda significativa e baixo investimento (2015-2018)

Após o início promissor, entre 2015 e 2018, o número de vagas financiadas diminuiu drasticamente. Em 2015, houve uma queda de 43,5%, com o número de vagas reduzido para 4.411. Essa redução continuou até 2018, quando o número de vagas caiu para 2.960, uma das menores ofertas registradas. Essa queda foi impulsionada por uma série de fatores, incluindo limitações orçamentárias e uma diminuição das políticas de incentivo ao financiamento de CTs durante este período.

1.3. Reforço nas políticas de acolhimento (2019-2021)

A partir de 2019, o governo federal voltou a investir em CTs, aumentando significativamente o número de vagas. Em 2019, o número de vagas saltou para 10.680, um aumento de 260,8% em relação ao ano anterior. Esse número se manteve estável em 2020, e em 2021, o número de vagas atingiu seu pico, com 16.963, representando um aumento de 58,8%. Esse crescimento foi resultado de um reforço nas políticas de apoio ao acolhimento de dependentes de substâncias psicoativas em CTs, reconhecendo a eficácia desse modelo de acolhimento para indivíduos em vulnerabilidade social que necessitam de um ambiente terapêutico extra-hospitalar.

1.4. Redução e crise de financiamento (2022-2024)

A partir de 2022, houve uma nova retração no financiamento das vagas. Houve uma redução de 11,2% no número de vagas, caindo para 15.063. A situação se agravou em 2023, quando o número de vagas caiu para 7.948, uma queda de 46,8%. Esse declínio foi causado pelo encerramento de contratos de cinco anos, conforme estabelecido em lei, e pela falta de orçamento federal para a contratação de novas CTs, mesmo após a habilitação no Edital 8/2023.

Em janeiro de 2024 e meses iniciais deste ano, o número de vagas reduziu ainda mais, atingindo 6.948, uma nova queda de 12,6%. Contudo, em julho de 2024, houve uma leve recuperação, com o número subindo para 8.956 vagas, representando um aumento de 28,9%.

II – Impactos da redução de vagas na população vulnerável

A redução das vagas financiadas trouxe um impacto considerável, especialmente para as populações de menor poder aquisitivo e aquelas em maior vulnerabilidade social. Segundo o III Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD), realizado pela Fiocruz, as CTs representam 61% do apoio utilizado pela população brasileira no acolhimento de dependentes químicos. Com a redução das vagas, muitas dessas pessoas ficam sem acesso a um serviço essencial para sua recuperação, o que agrava sua exclusão social e compromete sua capacidade de reinserção.

Diferentemente dos tratamentos ambulatoriais ou médico-hospitalares, que são regulados pelo art. 23-A da Lei nº 11.343/2006, as CTs oferecem um ambiente de acolhimento focado na abstinência e na reabilitação psicossocial. No entanto, conforme previsto pela lei, pessoas com comprometimentos graves, que necessitam de cuidados contínuos de saúde, não são elegíveis para esse tipo de acolhimento. A ausência de financiamento para esse perfil mais amplo de dependentes prejudica a oferta de suporte adequado, aumentando o número de indivíduos sem assistência.

III – Eficácia das Comunidades Terapêuticas

As comunidades terapêuticas têm se mostrado um modelo eficaz de acolhimento para indivíduos dependentes de substâncias psicoativas. Diversos estudos e revisões sistemáticas evidenciam a sua eficácia em comparação com outras modalidades de tratamento. A metanálise da Cochrane (Smith; Gates; Foxcroft, 2006) indicou que os acolhidos em CTs têm 86% maior chance de alcançar a abstinência 12 meses após o tratamento, além de uma 32% maior chance de estar empregados no mesmo período pós-tratamento. Além disso, a revisão sistemática de 11 estudos de Magor-Blatch et al. (2014) também identificou melhores resultados para os acolhidos em CTs em termos de abstinência, redução de crimes, saúde mental e inserção social.

Outro dado relevante vem do estudo de Kurlander (2019), ainda que numa amostra que não permita a generalização, aponta que indivíduos que receberam alta terapêutica na amostragem da pesquisa tiveram 2,5 vezes mais chance de obter maior qualidade de vida 12 meses após a saída da instituição, em comparação com aqueles que não passaram pelo acolhimento em CTs.

O estudo sobre o Programa Recomeço, liderado por Ronaldo Laranjeira e sua equipe, destacou a eficácia desse programa, especialmente no Estado de São Paulo. Alguns pontos relevantes do estudo incluem:

Satisfação dos acolhidos: No estudo, 79% dos pacientes relataram se sentir melhor com a permanência na Comunidade Terapêutica (CT), sendo que 25% declararam uma percepção de “melhora total” e 54% consideraram que houve uma “bastante melhoria”.

Reinserção social: O programa demonstrou ser eficaz na reintegração dos dependentes químicos ao convívio familiar e na melhoria da qualidade de vida dos acolhidos. A taxa de abandono do programa foi de apenas 4% em 2016, e a taxa de sucesso da reinserção social aumentou progressivamente, alcançando 71% em 2018.

Além dos dados de eficácia, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconheceu, no Parecer nº 9/2015, o perfil das comunidades terapêuticas como “estratégias terapêuticas com perfil reabilitador, reeducador e voltado para a reinserção sociofamiliar e ocupacional”. Esse reconhecimento reforça o papel das CTs como ambientes propícios para promover a recuperação e a reintegração social dos acolhidos, especialmente para aqueles que não necessitam de atendimento médico-hospitalar contínuo, mas que precisam de um ambiente de acolhimento estruturado.

IV – Conclusão

A redução das vagas financiadas em comunidades terapêuticas a partir de 2023 trouxe prejuízos significativos para a população vulnerável. O encerramento de contratos e a falta de orçamento para a contratação de novas CTs impactaram diretamente a capacidade de acolhimento, colocando em risco a recuperação de milhares de pessoas que dependem desse suporte para superar a dependência química.

As CTs desempenham um papel fundamental no acolhimento de dependentes que não necessitam de tratamento médico-hospitalar contínuo, mas que requerem um ambiente terapêutico para recuperação e reintegração social. Espera-se que o governo federal cumpra com o que dispõe o seu planejamento estratégico previsto na PORTARIA MDS Nº 907, DE 7 DE AGOSTO DE 2023, que estabelece, na Meta 4.55, a ampliação do número de acolhimentos em entidades de apoio e acolhimento atuantes em álcool e drogas contratadas pelo governo federal até 2026.

Gráfico: Evolução do Número de Vagas Financiadas pelo Governo Federal para Comunidades Terapêuticas (2012-2024)

O gráfico a seguir ilustra a evolução do número de vagas financiadas pelo governo federal para CTs ao longo dos anos:

* Os dados de dezembro/2023 e janeiro/2024 são estimados. Os dados de janeiro/2024 podem ter se concretizado ao longo dos primeiros meses de 2024.


Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 5 out. 2024.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Parecer nº 9/2015. Dispõe sobre as diretrizes de atuação das comunidades terapêuticas e sua natureza extra-hospitalar. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2015/9. Acesso em: 5 out. 2024.

FIORUCCI, R.; MASSA, A. III Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD). Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 2017. Disponível em: https://www.fiocruz.br. Acesso em: 5 out. 2024.

MAGOR-BLATCH, L. E.; BHULLAR, N.; THOMAS, D.; LOETSCHER, T. A systematic review of studies examining effectiveness of therapeutic communities. Therapeutic Communities, v. 35, n. 4, p. 168-183, 2014.

LARANJEIRA, Ronaldo; et al. Programa Recomeço: Avaliação de Eficácia no Tratamento de Dependentes Químicos no Estado de São Paulo. Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2018.

PORTARIA MDS Nº 907, DE 7 DE AGOSTO DE 2023. Dispõe sobre o planejamento estratégico para ampliação de vagas em comunidades terapêuticas. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/snas/regulacao/visualizar.php?codigo=6593. Acesso em: 5 out. 2024.

SMITH, L. A.; GATES, S.; FOXCROFT, D. Therapeutic communities for substance related disorder. Cochrane Database of Systematic Reviews, n. 1, 2006.

KURLANDER, P. A. Fatores associados à recidiva e ao abandono do tratamento de dependentes químicos: Um estudo longitudinal de eficácia em duas comunidades terapêuticas. 2019.

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